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terça-feira, 19 de outubro de 2010

As sobremesas da vida

Pessoa mais caridosa que ela não existia. Mais meiga também não. Mais bonita se encontrava sim, mas ela não necessitava dessa beleza física, efêmera e tão visual. Era assim minha vó Amélia.
Sempre gostei mais de vovó Amélia do que vovó Dulce. A razão eu nunca soube. Acho que nossos anjos da guarda se davam melhor.

Os bolinhos de chuva feitos por ela sempre me aguardavam quentinhos em cima da mesa de madeira quando eu era criança. O avental preso nas costas dela nunca estavam impecáveis, ela sempre o molhava lavando a louça ou sujava de açúcar, aquele pra polvilhar os bolinhos. Seus abraços eram gostosos e ternos, e eu, que tinha a altura da cintura dela, quando a abraçava, fazia com que minhas bochechas encostassem no açúcar para que eu, depois, pudesse adoçar um pouco a língua.

Os almoços organizados por ela não podiam sair melhores. Era uma fartura, uma gostosura dessas que só a Sua Vó faz com que tudo dela tenha. Eu, mesmo que estivesse sentado ao lado de mamãe para almoçar, na hora da sobremesa corria pra cadeira ao lado de vovó e, enquanto comia qualquer um daqueles doces maravilhosos preparados por ela, ouvia suas histórias de quando era menina e fantasiava viver naquela época.
Meus domingos não podiam ser mais agradáveis.

Fui crescendo, vovó envelhecendo mas nunca perdendo a graça ou a ternura. Sua lucidez parecia intocável. O ritual de me sentar ao seu lado na hora da sobremesa continuou. As histórias mudaram, ela não me contava mais sobre sua infância. Contava agora sobre suas artes na adolescência e suas escolhas na fase adulta. Eu me deliciava do mesmo jeito. História de vó parece ter sempre um toque de magia. Nunca me pareceu que ela houvesse feito alguma coisa na vida da qual tivesse se arrependido ou percebido que foi mal ou errado. Ela era perfeita.

Certo dia, eu, já com 27 anos, sentado ao lado dela naquela nossa hora sagrada, a disse:

- Vovó, a senhora está sempre a me contar coisas boas que fez, que viveu. E as coisas ruins? E seus arrependimentos? Nunca praticou um ato falho?

- Meu querido, eu esperava que um dia me fizesse essa pergunta. Se não a fizesse, confesso, a julgaria um tonto. Mas te dou um conselho: ''nunca se deve praticar um ato que não possa ser narrado durante a sobremesa.''

H.Reis

2 comentários:

  1. Helena, que tato maravilhoso de escrita! O início do texto se liga ao fim duma maneira tão sutil e bela, um final excelente, bem formulado, trabalhado! Como estou feliz em ver este texto! Parabéns.

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  2. Hahahaha grande final, mesmo!
    Adorei o texto, meus parabéns =)

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