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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Nossa casa, nossa cama, nosso presunto

Eram só ela e o gato. Viviam numa pobreza de encher os olhos e o coração de dó; na casa vazia de móveis, de pintura, herdada pela mãe dos dois. Sim eram irmãos. Haviam sido criados assim. Se tratavam e se amavam como tais. E assim em como toda relação de irmãos, havia brigas, picuinhas e picardias de um com o outro.

O Gato, por exemplo, quando era irritado pela Moça, fazia xixi atrás do sofá só para retrucar a irritação. Ela, por sua vez, ficava uns três dias atrás do lugar onde estava o mal cheiro; e durante esses dias de procura, eles não se falavam. Até que ela descobriu que a imaginação dele era limitada e ele só usava o mesmo lugar para fazer o tal xixi que a irritaria três dias depois.

O dia-a-dia era rotineiro. Ela trabalhava numa padaria que ficava bem longe de casa e enquanto ela trabalhava, ele tomava conta da casa dormindo. Ela chegava cansada, sentava logo no sofá que ele arranhava a toda hora e deixava que ele a tirasse os sapatos; e depois, lambesse seus pés como num banho de gato.
Os dois jantavam juntos sentados à mesa e depois iam dormir. Só havia uma cama. Também dormiam juntos.

Numa quinta feira cinzenta que nada havia de mais, a Moça foi elogiada pelo dono da padaria. Ele a disse que ela era muito dedicada, pontual e simpática com os fregueses. E que, por isso, a daria um pedaço inteiro de presunto de presente. A Moça só faltava pular de tanta alegria, mas nem sorrir mais que o normal ela podia, pois o patrão havia pedido segredo. Por que se algum outro  funcionário ficasse sabendo, poderia ficar chateado. Mas era claro pra ela e pra ele que o presunto dado não era só um presente pela boa conduta no trabalho. Ele tinha uma queda bem discreta pelas curvas da Moça. Isso todo mundo já tinha percebido.

A Moça chegou em casa como sempre cansada e nesse dia, com mais um peso na bolsa: o pedação de presunto plastificado. Não adiantava esconder. A coisa cheirava longe e chegando no bairro, todos os vizinhos deram um jeito de sair à porta ( os mais indiscretos) ou à janela para ver quem trazia a peça rara. Antes das lambidas rosas do Gatinho, o focinho dele foi fuçar outro lugar: a bolsa dela.
E foi inexplicável o que os olhos dele deixaram ver. Era uma alegria, mas uma alegria de gente. Ele já havia sim comido presunto, mas só uma vez quando a Moça o deixou na casa de uma tia rica para ir tratar de umas coisas num lugar longinho. O Gatinho lambeu-se todo, pulou alguns centímetros e começou a rasgar o plástico que envolvia o tesouro numa agitação que só. A Moça estava adorando observar a alegria dele, mas teve que parar para ir proteger o presunto, ou ele acabava aquela hora mesmo no estômago do irmão.

A Moça, mesmo morrendo de vontade de comer o trazido, deixou para apreciá-lo pela manhã; onde o sol também apreciaria o banquete. Se eu disser aqui que os dois irmãos nem conseguiram dormir direito por causa de ansiedade, vai parecer mentira. Mas quem sou eu para inventar coisas? Só conto o ocorrido e pronto. Dou, no máximo, uma pitada de humor nas histórias que me atrevo a narrar. Mas esse fato engraçado é inerente da história.
Ela custou mesmo a pegar no sono, e quando conseguiu, sonhou que conversava com o pedaço de carne rosa e o dizia que mesmo ele sendo tão bonitinho e lustrado, ela o comeria sem dó. O sonho do Gato já foi mais ousado: sonhava que o pedaço de presunto tinha pernas que só serviam para correr dele, se cansar e depois se render ao Gatinho deixando-se ser despedaçado.

A manhã do dia chegou e a primeira coisa a ser feita foi fatiar o pedaço de presunto. Ela,coitada, sem muito jeito, cortou fatias grossas, finas e até machucou o dedo com a faça. Separou única a travessa de louça que tinha, que ficava na mesa da sala( era o único enfeite da casa), lavou-a e espalhou ali o pedaço de carne cor-de-rosa recém fatiado. Sentaram-se os dois á mesa como sempre, e ficaram um olhando nos olhos do outro. As bocas, já cheias de água pela vontade, passavam a responsabilidade para os olhos; que ficavam agora como os de crocodilo ao ver algo apetitoso. Cheios d'água.

Comeram sem saber comer. Ela se preocupou em não deixarem-se comer tudo, pois queria sentir daquele prazer outra vez; quem sabe à noite ou no outro dia. Mas a hora havia passado. Ela olhou o relógio e já havia se atrasado 15 minutos. Foram os 15 minutos em que ela comeu sem saber comer e sem lembrar que o tempo existia, ou era marcado pelo relógio. A Moça correu até a porta com a bolsa no ombro e nem lembrou-se de trancar a fechadura, devido ao desespero que a pegou. Como chegaria no trabalho tendo sido presenteada em segredo pelo patrão pela boa conduta? Não conseguiria. Foi isso o que pensou, mas iria mesmo assim. Seria despedida se preciso fosse, mas não se ia se render aos 15 minutos perdidos.

Chegando no ponto onde passava a condução, a Moça lembrou-se , para a sua infelicidade, que havia se esquecido de guardar o restante do presunto. Desesperou-se mais. Ficou no empasse: Ir para o trabalho assim mesmo, ou deixar o Gato comer tudo? Não, não podia. Mesmo tendo um amor enorme pelo irmão que a mãe deixara, o presunto era presente seu, ganhado com seu esforço(e suas curvas) pelo patrão na padaria.

A Moça, indignada com sua displicência dupla, voltou pra casa. Abriu a porta que havia esquecido de trancar, e foi direto para a mesa da cozinha onde havia deixado seus dois tesouros: o Gato e o fatiado cor-de-rosa. Só um deles estava lá. Em cima da mesa como ela havia deixado: O Presunto. E o Gato? Ah, o Gato. Estava ele lá, deitado no lugar de sempre, com um olhar de satisfeito E mais: com um olhar que dizia á Moça: ''Somos irmaõzinhos.Eu nunca comeria esse presunto sem você.''.

domingo, 18 de setembro de 2011

Sábado à tardinha

Num sábado à tardinha a gente fica com vontades..

Se quer ter um gato
E também um cachorro.

(Se quer poder começar frases com pronomes.
Saiba: agora é uma tardinha de sábado.)

Se quer mais...se quer um amor
Um amor pra ir dormir, pra ver acordar
Pra ver a beleza e compartilhar as feiuras invisíveis
(Pois quando se está amando as coisas feias desaparecem)

Se quer ser escritor
Inventar uma história ou contar a sua
Se quer personagens pra brincar

Num sábado á tardinha
Quer poder se tocar, coçar
Quer ver o tempo parar
Mas é aí que se acorda.
Pois o tempo não pára.

O tempo vai junto com a vontade e a tardinha do sábado caprichoso.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Mulher

No silêncio da mulher amada existe o ódio latente.
O ódio de não ter sido amada antes;
Do medo do amor não continuado...
Concluído.

Na preocupação da mulher mãe
Há o choro dela,
Ela criança, ela bebê...
Que quer ser cuidado, amamentado
Mas que foi esquecido por um só  momento,
Cresceu e virou progenitora

A mulher meretiz tem as pernas que se abrem quentes...
pulsantes, roliças.
Mas estão gastas.
Nunca mais puras, nunca mais intactas pelas mãos do mundo.
E a meretriz ignora a poesia de seu corpo; a poesia de seu ato
E o faz repetir vezes por dia, sem sentimento...
Ela não sabe o quanto é poética, o quanto é essencial para a percepção do belo.

És tu, Mulher, tudo isso.

Uma amada mãe meretriz
que traz o mundo nas pernas
e no coração o sentimento da humanidade
que merece cuidado
mas que chora o mesmo pranto desde seu nascimento.

H.Reis