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terça-feira, 1 de março de 2011

Beijo guardado

Tenho aqui do lado de minha casa vizinhos barulhentos. Vizinhos barulhentos que reproduziram filhos barulhentos. Filhos tais que vêem para debaixo da minha janela brincar de esconde-esconde à noite. Sempre achei essa brincadeira à essa hora muito estranha - minha mãe mesmo, quando eu era criança, não me deixava brincar disso nesse horário, dizia ser ''muito perigoso''.

Até que nesse domingo passado à noitinha estava eu a vagar pela casa, sem nada pra fazer ou pra ver e então resolvi admirar minha paisagem da janela. Não que seja grande coisa - um prédio pra lá, outro pra cá e umas árvores incrustadas nesse meio- pra não poderem dizer que não há verde por aqui. Debrucei os braços no parapeito incômodo da janela e depois de mirar alguns minutos minha paisagem individual, comecei a ouvir uns sussurros.
Custei para conseguir identificar de quem eram aqueles barulhinhos que vinham de debaixo do meu parapeito.
Prestei bem atenção. Eram o resultado da reprodução dos vizinhos barulhentos, mas pareciam que ali se encontravam em versão discreta 2.0.
Parecia ter ali três pré-adolescentes, pois contavam a idade um para o outro:

-Eu tenho 11 e você, Gustavo?
-Eu também, respondia Gustavo.
Gabi, sem ninguém perguntar, disse ter dez.

Gustavo, depois de um momento de hesitação ansiosa e nervosa, perguntou a Emanuele:

- Cê já beijou na boca?

Emanuele, dando uma de boa samaritana, desviou o assunto:

- Minha mãe disse que me deixa namorar em casa só depois dos 12. Falta menos de um ano, deu um riso assanhado e prosseguiu: mas enquanto isso eu beijo no cinema.

Gustavo abriu bem os olhos, e depois voltou ao normal. Não podia dar bandeira, Emanuele nunca poderia saber que ele não havia ainda beijado, muito menos no escuro de um cinema.
Depois de ouvir estupefata a revelação de Emanuele, Gabi percebeu que estava sobrando ali; agarrou sua boneca de pano e desistiu de brincar de esconde-esconde naquele espaço, com aquelas companhias.

Emanuele, menina faceira e bem atrevida, tinha olhinhos pretos que nem a noite. Olhou Gustavo com ternura, tentando quase que seduzi-lo. Gustavo não precisava mais de sedução. Só de saber que a menina já tinha beijado, ainda por cima no cinema, ele já estava encantado. Encantado mais pela precocidade dela do que por qualquer outra coisa.
Depois que ela percebeu que seu olhar raro não havia provocado no menino nenhuma reação distinta, Emanuele partiu pro ataque:

- Quer ir no cinema comigo?

Gustavo nem pronunciava palavra. Não havia meios. Pegou na mão de Emanuele, chegou o rosto perto do dela e quase encostaram os lábios. Mas não. Gustavo se conteve. Estava guardando o primeiro beijo pro escuro do cinema.
O ''pega'' da brincadeira já havia desistido de procurá-los depois de ouvir de Gabi:

- Eles tão ali atrás daquela árvore, mas não vai lá não!!!

Agora eu entendi por que mamãe nunca me deixou brincar de esconde-esconde num escurinho, nem que fosse da noite e não do cinema.

H.Reis

3 comentários:

  1. Me diverti com a historia, mt criativa Helena :D

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  2. É criatividade da vida. É real.
    Eu só passei pro papel.
    Juro que estou louca pra saber se Emanuele foi ao cinema com Gustavo.
    hehe
    Obrigada!

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  3. Ai, mas que lindeza, que lindeza! :) Encantador.

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