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quinta-feira, 10 de junho de 2010

Só aquilo


Hoje eu saí de casa com o objetivo de me sentir livre,leve e solta.Literalmente.Queria ver na minha sombra refletida no chão,meus cabelos voando por causa do vento que batia neles e quase os levava junto,na direção do dia.Olhei o céu, não totalmente azul, tinha nuvens espalhadas, aquela inconstância me agradava.Eu andava devagar,respirava devagar,tentando sentir cada molécula do ar que entrava pelo meu nariz.Quando saí na rua acho que até chamei a atençao,pois todo mundo estava com pressa,correndo,preocupado,moderno.E eu na minha calma,dentro do meu objetivo,passos leves,respiração profunda e cabelos ao vento, e eu não tinha também nenhum lenço ou documento.Depois de fechar de leve o portão,coisa não habitual,pois sempre o bato com força,dei de cara com uma senhora,que não devia ser tão velha,mas que na aparência era.Tinha olhos bem pequeninos e cerrados,como se quisesse se fechar totalmente pra esse nosso mundo maldoso que a fazia parecer mais velha.
Meu sorriso de Monalisa estava impresso no rosto,só uma bomba o poderia arrancar dali.
Fui andando,quer dizer,quase volitando por aí.
Chegando mais à frente avistei o velhinho simpático que queria me vender relógios em uma outra semana passada.Ela estava sentado,sem nenhum propósito numa cadeira qualquer da sorveteria.O cumprimentei,ele pegou na minha mão.Mas que mãozinha mais quentinha tinha senhor Lorenzo!Minhas mãos ,que estavam geladas,devido ao frio que fazia,agradeceram àquelas mãozinhas macias e quentes do velho senhor.E foi um cumprimento demorado.Parecia que ,com aquele aperto de mãos,ele queria pegar um pouco da minha juventude ou então me passar o mínimo que fosse de sua sabedoria.
Eu havia saído de casa um pouco mais cedo,exatamente para poder cumprir o objetivo. Livre.Leve.Solta.Senhor Lorenzo me pegou de papo:
-Quando vai comprar o relógio, menina?
Eu adoro quando as pessoas me chama de ''menina'', me sinto ainda criança.
-Pode deixar,quando meu pai me der meu próximo dinheiro,eu vou guardar só pra comprar aquele relógio!
-Ah tah.
Não me lembro em que contexto,surgiu o assunto música(ele fazia esse assunto surgir de propósito para contar suas vantagens).
-Eu ganhava dinheiro,menina! Comprei até uma casa em Montes Claros.
-Annh,mas agora arte não dá dinheiro não, seu Lorenzo.
-Ah,mas naquela época dava.Eu que trabalhei com Orlando Silva,( e ele falava outros tantos nomes que eu nunca tinha ouvido) e tocava bateria e sax!
Eu ouvia aquilo com a máxima atenção possível,mesmo que aquilo não fosse verdade,eu queria que ele se deliciasse naquelas memórias e que houvesse alguém que desse importância e acreditasse.Aquele alguém era eu.
Me toquei que tinha horário para chegar no colégio.Me despedi com muito custo de seu Lorenzo,pois ele sempre puxava outro assunto e eu não o cortava de forma alguma.
Virei a esquina e andei rápido.Percebi que o velho senhor tinha me atrapalhado no objetivo,eu agora tinha que correr,tinha que pensar no relógio,tinha que respirar rápido e andar pesado.
Lá na frente,já com pressa e medo de perder a aula,vinha uma moça com uns celulares na mão,divertindo-se com uma amiga ao lado.
Perguntei as horas.
-3 e 50 e ... 4 horas!
-Obrigada ,moça.
Mas que droga,ela não podia nem me aliviar um pouquinho?Podia muito bem dizer : São 3 e 58,59.Mas não,disse 4 horas,só pra me apavorar mais e eu ter que correr também mais.
Acho que as pessoas deveriam ser mais compreensivas.
Cheguei na sala de aula,a professora já tinha começado a aula de química.
Caí na realidade.
Presa.Pressa.Dependência.Frio.
Não tinha mais mãos quentes,macias e musicais de seu Lorenzo ou o olhar pequeno da senhora aparentemente velha.
Tinha horários a cumprir,tabelas para decorar e provas a fazer.
E mais nada de leveza.
Mais nada de liberdade.
Era só aquilo.
Decepção.

H.Reis

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